Há uma luz vaga entre as nuvens

Imagem: @Paulo Sérgio BEJu


Levanto-me cedo. Trabalho. Nos intervalos bebo garotos para acordar. Leio e explico poemas e também a diferença entre uma preposição e uma conjunção. Respondo aos miúdos. Ralho com eles. Ouço-os. Mando-lhes bocas. Nunca minto. Digo-lhes que são uns traidores quando são uns traidores, ou que são o que de melhor o mundo alberga, quando são o que de melhor o mundo alberga. Parece fácil. Admito que chegue a parecer bonito, mas são horas a fio de interpretação em improviso, apesar do guião, e nunca nada está pronto nem completo nem satisfaz ninguém. Quem manda, pensa que não valho nem faço, que sou um falhanço, um balão de ar.
Conduzo o automóvel. Penso que um dia destes até podia aspirá-lo. 
Almoço durante dias a mesma refeição, porque a confecionei em grande quantidade para evitar trabalho. 
Dou beijos à cadela e aos borrachinhos. A cadela cheira-os, ansiosa. Explico que não pode fazer-lhes mal e o seu instinto contempla-me intocado. Beijo os borrachos e a cadela. Beijo a cadela e os borrachos. Um da varanda de trás, deve ser o macho, aponta-me o bico, defensivo. O pedaço de carne poupada ao tacho! Dou-lhe beijos. E à cadela. "Só podes ver. Não podes tocar nos passarinhos".
Penso que deveria arrumar a cozinha, mas amanhã é melhor. Rego as plantas. Acudo sempre primeiro ao que tem fome e sede.
Tenho muito sono. Não devia dormir. Durmo. Depois, amanhã.
Trabalho com papéis, canetas, lápis e computador. Muitas horas seguidas. Faço telefonemas, mas poucos. Estou sempre em silêncio. O silêncio concorda com a minha cabeça. Não penso no que não me interessa. Faço de conta que a vida é pássaros, cães, papéis e silêncio, simulação de paz à qual me sinto com direito, em certos dias. E beijo o silêncio.
Quando a cadela tem fome dou-lhe a ração à boca. "Tem de ser. Toma mais um bocadinho". Sentamo-nos ritualmente no chão da cozinha, alheadas como mãe, filho, mama. Enquanto enche a barriga, escuto o ruído crocante dos grãos triturados pelos seus dentes. A língua lambe-me a palma da mão.
Tomo os comprimidos. Fico na sala a ler, esperando que surtam efeito. Quando me chegam à cabeça, pego na cadela, entorpecidas pelo sono, e carrego-a nos braços até o quarto. Cheira a baba e pelo. É frágil, macia e doce. Ao meu pensamento acorre que levo nos braços a minha Marilyn Monroe. Deposito-a na cama, ela suspira e fica como a deixo. Deito-me e dormimos para aguentar recomeçar. Um dia havemos de morrer, mas agora ainda temos esta noite.

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